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O desempenho esportivo entre sexos: o que a ciência diz sobre atletas transgêneros?

Brunno Falcão

8 min

17 de out. de 2023

Na era vigente, muito se fala sobre a participação e valorização da mulher no esporte. Infelizmente, sabemos que o investimento financeiro e midiático para os homens ultrapassa e muito o que já foi gasto com as mulheres. Concomitante a isso, há um debate recente sobre a inserção de atletas transgêneros em diversas modalides e a cerca de seu desempenho esportivo. Um caso bem recente é o da nadadora Lia Thomas, de 22 anos, da Universidade da Pensilvânia – EUA, que terminou 38 segundos à frente da segunda colocada. Neste sentido, na análise das diferenças biológicas entre atletas de elite, todos da mesma faixa etária, mas de sexos diferentes, revela um panorama delicado e complexo no mundo do esporte. Os atletas masculinos, impulsionados em grande parte pela testosterona, apresentam uma notável vantagem quando se trata de capacidade de trabalho muscular.  Além disso, suas fibras musculares tendem a ser maiores e mais desenvolvidas para força e explosão e, portanto, são capazes de gerar potência de maneira mais eficaz. Consequentemente, a recuperação muscular após um esforço intenso é geralmente mais rápida no sexo masculino, permitindo que eles treinem com maior frequência e intensidade. A adaptação aguda ao esporte, como a capacidade de responder rapidamente a situações imprevistas durante uma competição, também é uma área onde os homens frequentemente mostram uma vantagem. Isso, em parte, pode ser atribuído às diferenças hormonais e neuromusculares entre os sexos. No entanto, é fundamental reconhecer que a história do esporte foi marcada por um profundo viés de gênero. As mulheres enfrentaram barreiras significativas para a participação em competições esportivas. Até o ano de 1884, por exemplo, as mulheres eram proibidas de competir no prestigioso torneio de tênis de Wimbledon, e a primeira mulher a vencer a competição o fez competindo contra homens, destacando sua notável habilidade esportiva.  É importante lembrar que na Grécia Antiga, onde as Olimpíadas tiveram sua origem, os Jogos Olímpicos eram exclusivamente destinados a atletas do sexo masculino. As mulheres estavam excluídas desses eventos esportivos por razões culturais e sociais da época. Desde então, as barreiras de gênero foram gradualmente superadas, e as mulheres conquistaram um lugar de destaque no mundo do esporte. No entanto, as diferenças biológicas fundamentais permanecem e continuam a ser um tema de estudo e discussão. Hoje, os avanços na pesquisa científica e nas políticas esportivas buscam garantir que atletas de ambos os sexos tenham oportunidades equitativas e justas para competir no mais alto nível, independentemente de suas diferenças biológicas.  Table of Contents Toggle A genética entre XX e XY no Desempenho Esportivo Desempenho Esportivo no Contexto Transgênero Prática Clínica Referências Bibliográficas A genética entre XX e XY no Desempenho Esportivo Certamente, a diferença física entre homens e mulheres está na genética. No início da gestação, as estruturas reprodutivas, incluindo gônadas, estruturas reprodutivas internas e genitais externos, são indiferenciadas e idênticas entre fetos XX e XY. Até que em determinado momento da 13°semana, a expressão de gene autossômico ligado ao cromossomo Y, o gene SRY, inicia toda uma cascata de produção de hormônios sexuais como testosterona e androstenediona dando início a diferenciação sexual na direção masculina. Portanto, a diferença física inicia-se ainda no período embrionário.  Até a puberdade, os meninos experimentam um aumento significativo na concentração de testosterona, que pode aumentar até 30 vezes mais do que os níveis pré-puberais. Essa elevação hormonal desempenha um papel crucial nas diferenças de desempenho atlético entre os sexos. Na fase adulta, os níveis médios de testosterona em adultos do sexo masculino são cerca de 15 vezes mais altos do que nas mulheres.  Essa disparidade hormonal tem um impacto profundo em várias facetas do desempenho esportivo, abrangendo aspectos como o volume cardiopulmonar, desenvolvimento muscular, recuperação pós-exercício, força, explosividade e capacidade de trabalho, todos os quais contribuem para as notáveis diferenças observadas na performance atlética entre homens e mulheres. Provavelmente, tudo que te contei aqui até agora você já sabia ou pelo menos possui uma breve noção. Porém, recentemente no dia 30/09/2023, o American College of Sports Medicine, publicou a mais recente declaração “The Biological Basis of Sex Differences in Athletic Performance: Consensus Statement for the American College of Sports Medicine”. Documento importante que reforça tudo o que foi dito nesse texto que você está lendo. Inclusive, é o primeiro posicionamento de uma grande instituição sobre pessoas transgênero no esporte, baseado em ciência e questionando a decisão do Comitê Olímpico Internacional.  Com certeza, você deve estar pensando “se a testosterona é tão determinante assim, então é só garantir a terapia de reposição hormonal com testosterona em homens trans e também a supressão androgênica com Acetato de Ciproterona, por exemplo, em mulheres trans, e pronto, problema resolvido”. Vou te contar porque esse pensamento linear não funciona na prática ou na ciência. O documento da ACSM revela que em mulheres na pós menopausa, estudos demonstraram que a administração de testosterona aumentada por um período de até 24 semanas está associada a um aumento na massa magra e no desempenho muscular, dependendo da dose. A dose mais alta resultou em uma concentração média de testosterona de 7,3 nmol/L e causou um aumento de 4,4% na massa magra dessas mulheres.  Além disso, em um ensaio clínico randomizado, mulheres jovens e saudáveis que praticavam exercícios regularmente foram tratadas com testosterona (10 mg diários) ou placebo por 10 semanas. No grupo tratado, os níveis de testosterona aumentaram para uma concentração média de 4,3 nmol/L, a massa muscular aumentou, e o desempenho aeróbico (tempo de corrida na esteira até a exaustão) melhorou em 8,5% em comparação com o grupo do placebo.  Desempenho Esportivo no Contexto Transgênero As mulheres trans, medicadas com um bloqueador da puberdade, como um agonista do GnRH, apresentam uma porcentagem maior de gordura corporal em comparação com controles da mesma idade, gênero e índice de massa corporal. Estudos longitudinais demonstram que as mulheres transgêneros tratadas com estradiol tendem a aumentar a gordura corporal e diminuir a massa magra, enquanto os homens transgêneros que recebem tratamento com testosterona experimentam efeitos opostos. Em homens trans, a terapia de afirmação de gênero hormonal envolve o tratamento com testosterona com o objetivo de atingir níveis dentro da faixa considerada masculina. Isso resulta em níveis aumentados de hemoglobina, aumento da massa magra, e aumento da área da secção transversal muscular, além de uma redução na gordura corporal, mas não causa alterações na altura quando administrada após a puberdade.  Em atletas homens trans, observa-se um aumento significativo no desempenho físico em homens transgêneros após o uso de hormônios masculinos. Após 1 ano de transição, os homens transgêneros apresentaram um aumento na força de preensão manual, no número de repetições de flexões e na força das pernas, e essas mudanças foram associadas a um aumento na massa muscular/magra. Em mulheres trans, diversos estudos longitudinais realizados demonstram uma redução nos níveis de hemoglobina/hematócrito (sendo este último equivalente aos de mulheres cisgênero após cerca de 4 meses), bem como na massa magra, área de secção transversal muscular e força muscular. No entanto, mesmo 14 anos após o início da terapia de afirmação de gênero hormonal, essas mulheres transgênero geralmente apresentam uma força muscular superior à das mulheres cisgênero. Por exemplo, mulheres transgênero não atletas que passaram por tratamento com estrogênio por 12 meses reduziram o volume muscular em 5%, mas mantiveram a força muscular. Para avaliar ainda mais a aptidão física de um número crescente de membros do serviço militar transgênero, um grupo de pesquisa estudou recentemente uma coorte maior de pessoas transgênero da Força Aérea por até 4 anos. Mulheres transgênero tiveram um desempenho melhor do que as mulheres cisgênero na corrida de 1,5 milha até 2 anos de terapia hormonal de reafirmação de gênero. Pelo menos 4 anos foram necessários para mostrar diferenças mínimas entre mulheres transgênero e cisgênero em avaliações de resistência muscular, mas mulheres transgênero superaram as mulheres cisgênero em flexões.  Prática Clínica Em resumo, é inegável que os homens superam as mulheres em esportes e atividades atléticas que exigem resistência aeróbica, força muscular, potência e velocidade. As diferenças biológicas entre homens e mulheres resultam em uma diferença sexual de cerca de 10% a 30% no desempenho atlético, embora a magnitude dessa diferença dependa das demandas específicas do evento/esporte e dos sistemas biológicos mais envolvidos. Os homens são naturalmente mais altos, com membros mais longos, além de serem mais fortes, explosivos e rápidos do que as mulheres, tanto em distâncias curtas quanto longas. Essas diferenças de desempenho se devem em grande parte às características biológicas dos homens, que incluem uma massa muscular esquelética maior, uma porcentagem menor de gordura corporal e músculos que contraem mais rapidamente, devido a uma área e volume proporcionais maiores de fibras musculares de contração rápida em comparação com as mulheres.  No caso de eventos de resistência, como corridas de longa distância, a diferença entre os sexos (~10% entre os melhores do mundo) é ditada pelo maior poder aeróbico dos homens, que possuem um tamanho cardíaco maior, maior volume sanguíneo, mais hemoglobina no sangue, maior massa muscular, maiores vias aéreas e capacidade pulmonar, menos gordura corporal e, consequentemente, um VO2 máximo superior. Já em eventos atléticos que dependem principalmente da potência muscular, como levantamento de peso e saltos, a diferença entre os sexos pode chegar a 30%. Isso ocorre porque os homens têm uma massa muscular maior, músculos que contraem mais rapidamente, membros mais longos e uma estatura maior, que juntos geram mais potência nos membros em comparação com as mulheres. A principal causa dessa grande diferença de desempenho entre os sexos é a exposição a níveis elevados de testosterona endógena em meninos no início da puberdade, que aumentará 30 vezes mais nos homens, enquanto permanece em níveis baixos nas mulheres. As mulheres, por outro lado, experimentam o ciclo menstrual e flutuações mensais nos hormônios endógenos, incluindo o estradiol, que é importante para a manutenção da massa óssea, massa muscular esquelética e metabolismo de proteínas nos tendões. No entanto, o estradiol não possui os mesmos efeitos anabólicos da testosterona, que é a principal responsável pelas grandes diferenças de desempenho observadas. Os efeitos dos hormônios esteroides sexuais, em particular os efeitos potentes, rápidos e duradouros da testosterona, são evidentes em experimentos e estudos onde esses hormônios foram adicionados ou suprimidos em homens e mulheres, em estudos da fisiologia e desempenho de indivíduos com diversas doenças ligada ao sexo e em estudos de homens e mulheres transgênero em resposta à terapia de afirmação de gênero hormonal. Essas descobertas destacam a influência substancial dos hormônios sexuais na determinação do desempenho atlético e na ampla diferença de desempenho entre homens e mulheres em diversos esportes e atividades físicas. No entanto, é importante ressaltar que este é um campo de estudo relativamente novo e em constante desenvolvimento. O debate sobre a justiça da competição esportiva entre pessoas transgênero e cisgênero está longe de ser concluído. É provável que novos documentos e pesquisas surjam, tanto reforçando quanto contestando as conclusões estabelecidas até agora. Atualmente, o documento foi claro em mostrar superioridade fisica de mulheres trans competindo com mulheres cis.   Certamente, a população transgênero, tanto atletas quanto não atletas, continua enfrentando desafios significativos devido à falta de consenso e estudos abrangentes sobre sua saúde mental, física e desempenho esportivo. É essencial que haja um investimento em pesquisas adicionais e no desenvolvimento de diretrizes esportivas focadas nessa população com soluções justas e inclusivas para garantir que todos tenham igualdade de oportunidades, respeitando as diferenças individuais. Referências Bibliográficas Leitura sugerida:  Testosterona na Ponta dos Dedos: A autonomia do paciente na aplicação HUNTER, Sandra K.; ANGADI, Siddhartha S.; BHARGAVA, Aditi; HARPER, Joanna; HIRSCHBERG, Angelica Lindén; LEVINE, Benjamin D.; MOREAU, Kerrie L.; NOKOFF, Natalie J.; STACHENFELD, Nina S.; BERMON, Stéphane. The Biological Basis of Sex Differences in Athletic Performance: consensus statement for the american college of sports medicine . Translational Journal Of The American College Of Sports Medicine, [S.L.], v. 8, n. 4, p. 1-33, 2023. Ovid Technologies (Wolters Kluwer Health). Classifique esse post